Por força das circunstâncias vi-me forçado a atrasar a minha incursão pelas Terras Baixas. O meu fiel cavalo não podia continuar.
Tendo procurado auxílio junto de uma gente que se cruzou no meu caminho, aprecebi-me desde logo do seu amistoso carácter: cinco mulheres e um sarraceno (presumo que tinha desposado todas elas), muito amigáveis, genuinamente interessados nas minhas aflições e nas maleitas do meu cavalo, mostravam intenções de me ajudar.
Uma das mulheres do sarraceno, a mais loira, ria-se muito, despropositadamente, ao mesmo tempo que soltava gases sem qualquer pudor. O marido olhava para ela com ar de reprovação. Uma outra, como quem está a um passo do purgatório, resmungava entre dentes: "...tresmalhados, são uns tresmalhados!..."
Por fim, convidaram-me para cear. Aceitei o convite sem contudo sentir algum receio daquelo meu recente convívio com gentes tão exóticas. Esta minha ligeira apreensão não era infundada: aqueles insólitos anfitriões, os seus desvarios, ficaram-me para sempre gravados na memória, embora toda a cena possua contornos muito nebulosos.
Como explicar o que sucedeu?
As garrafas de vinho que continuamente se abriam (nunca vi um árabe apreciar tão religiosamente o fermentado da uva), os gritos das mulheres, a teia de conversas cruzadas impossível de seguir, os tabacos alucinogéneos fumados no meu cachimbo, a cartomante que nos decifrou o futuro, toda esta amálgama de factores que me derretiam os sentidos, e o transe da mulher que insistia: "...tresmalhados, tresmalhados..."
Surgido não sei porquê, um burburinho de risos foi gradualmente crescendo, contagiando os convivas, uma bola de neve de convulsões histéricas, de gargalhadas reprimidas ou que explodiam sem sentido. As lágrimas correram-me pela cara e continuo sem saber porquê...
Se bem me recordo a refeição terminou sem sobressaltos. No entanto, os efeitos do álcool, da intoxicação provocada pelos tabacos, da própria comida, reclamavam os seus juros. Deitei-me com a cabeça a andar à roda, o caleidoscópio destas recentes experiências girava no meu espírito.
Acordei num estábulo juntamente com o meu cavalo. Uma das mulheres da noite anterior ocupava-se com o tratamento da sua pata ferida: aplicou unguentos e ia introduzindo umas agulhas finíssimas na sua bela musculatura. O equídeo incrivelmente calmo, sem qualquer temor ou desconfiança, como se conhecesse aquela personagem há muito tempo. Voltei a adormecer. Sucederam-se imagens confusas, reinos distantes, uma atmosfera oriental invadia-me o sono...
Finalmente desperto dei comigo sozinho, somente com o meu fiel cavalo, agora nitidamente restabelecido da sua pata.
Onde estaria aquela gente que tão depressa desapareceu como se cruzou no meu caminho?
Que porções de realidade e de fantasia compõem a recordação destes acontecimentos?
O que me reserva o destino nesta minha aventura pelas Terras Baixas?...